segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Wallerstein: Os desafios da esquerda pós-2011

13 de janeiro de 2012
Por Immanuel Wallerstein
 
O desemprego, que era alto, cresceu ainda mais. A maioria dos governos enfrentou grandes dívidas e receita reduzida. A resposta deles foi tentar impor medidas de austeridade contra suas populações, ao mesmo tempo em que tentavam proteger os bancos.

O resultado disso foi uma revolta global daquilo que o movimento Occuppy Wall Street chama de “os 99%”. Os alvos eram a excessiva polarização da riqueza, os governos corruptos e a natureza essencialmente antidemocrática desses governos – tenham eles sistemas multipartidários ou não.

O Occuppy Wall Street, a Primavera Árabe e os Indignados não alcançaram tudo o que esperavam. Mas conseguiram alterar o discurso mundial, levando-o para longe dos mantras ideológicos do neoliberalismo – para temas como desigualdade, injustiça e descolonização. Pela primeira vez pessoas comuns passaram a discutir a natureza do sistema no qual vivem. Já não o veem como natural ou inevitável…

A questão para a esquerda mundial, agora, é como avançar e converter o sucesso do discurso inicial em transformação política. O problema pode ser exposto de maneira muito simples. Ainda que exista, em termos econômicos, um abismo claro e crescente entre um grupo muito pequeno (o 1%) e outro muito grande (os 99%), a divisão política não segue o mesmo padrão. Em todo o mundo, as forças de centro-direita ainda comandam aproximadamente metade da população mundial, ou pelo menos daqueles que são politicamente ativos de alguma forma.

Esquerda dividida

Portanto, para transformar o mundo, a esquerda mundial precisará de um grau de unidade política que ainda não tem. Há profundos desacordos tanto sobre a objetivos de longo prazo quanto sobre táticas a curto prazo. Não é que esses problemas não estejam sendo debatidos. Ao contrário, são discutidos acaloradamente, e pouco progresso tem sido feito para superar essas divisões.

Essas discordâncias são antigas. Isso não as torna fáceis de resolver. Existem duas grandes divisões. A primeira é em relação a eleições. Não existem duas, mas três posições a respeito. Existe um grupo que suspeita profundamente de eleições, argumentando que participar delas não é apenas politicamente ineficaz, mas reforça a legitimidade do sistema mundial existente.

Os outros acham que é crucial participar de processos eleitorais. Mas esse grupo está dividido em dois. Por um lado, existem aqueles que afirmam ser pragmáticos. Eles querem trabalhar de dentro – dentro dos maiores partidos de centro-esquerda quando existe um sistema multipartidário funcional, ou dentro do partido único quando a alternância parlamentar não é permitida.

E existem, é claro, os que condenam essa política de escolher o mal menor. Eles insistem que não existe diferença significativa entre os principais partidos e são a favor de votar em algum que esteja “genuinamente” na esquerda.

Todos estamos familiarizados com esse debate e já ouvimos os argumentos várias vezes. No entanto, está claro, pelo menos para mim, que, se não houver algum acordo entre esses três grupos em relação às táticas eleitorais, a esquerda mundial não tem muita chance de prevalecer a curto ou a longo prazo.

Acredito que exista uma forma de reconciliação. Ela consiste em fazer uma distinção entre as táticas de curto prazo e as estratégias a longo prazo. Concordo totalmente com aqueles que argumentam que obter poder estatal é irrelevante para as transformações de longo prazo do sistema mundial – e possivelmente as prejudica. Como uma estratégia de transformação, foi tentada diversas vezes e falhou.

Aliviar a dor

Isso não significa que participar nas eleições seja uma perda de tempo. É preciso considerar que uma grande parte dos 99% está sofrendo no curto prazo. Esse sofrimento é sua preocupação principal. Tentam sobreviver e ajudar suas famílias e amigos a sobreviver. Se pensarmos nos governos não como agente potencial de transformação social, mas como estruturas que podem afetar o sofrimento a curto prazo, por meio de decisões políticas imediatas, então a esquerda mundial se verá obrigada a fazer o que puder para conquistar medidas capazes de minimizar a dor.

Agir para minimizar a dor exige participação eleitoral. E o debate entre os que propõem o menor mal e os que propõem apoiar partidos genuinamente de esquerda? Isso torna-se uma decisão de tática local, que varia enormemente de acordo com vários fatores: o tamanho do país, estrutura política formal, demografia, posição geopolítica, história política. Não há uma resposta padrão. E a resposta para 2012 também não irá necessariamente servir para 2014 ou 2016. Não é, pelo menos para mim, um debate de princípios. Diz respeito, muito mais, à situação tática de cada país.

O segundo debate fundamental presente na esquerda é entre o desenvolvimentismo e o que pode ser chamado de prioridade na mudança da civilização. Podemos observar esse debate em muitas partes do mundo. Ele está presente na América Latina, nos debates fervorosos entre os governos de esquerda e os movimentos indígenas – por exemplo na Bolívia, no Equador, na Venezuela. Também pode ser acompanhado na América do Norte e na Europa, nos debates entre ambientalistas/verdes e os sindicatos, que priorizam manutenção dos empregos já existentes e a expansão da oferta de emprego.

De um lado, a opção desenvolvimentista, apoiada por governos de esquerda ou por sindicatos, sustenta que, sem crescimento econômico, não é possível enfrentar as desigualdades econômicas do mundo de hoje – tanto as que existem dentro de cada país quanto as internacionais. Esse grupo acusa o oponente de apoiar, pelo menos objetivamente e talvez subjetivamente, os interesses das forças de direita.

Os que apoiam a opção antidesenvolvimentista dizem que o foco em crescimento econômico está errado em dois aspectos. É uma política que leva adiante as piores características do sistema capitalista. E é uma política que causa danos irreparáveis – sociais e ambientais.

Essa divisão parece ainda mais apaixonada, se é que é possível, do que a divergência sobre a participação eleitoral. A única forma de resolver isso é com compromissos, diferentes em cada caso. Para fazer com que isso seja possível, cada grupo precisa acreditar na boa fé e nas credenciais de esquerda do outro. Isso não será fácil.

Essas diferenças poderão ser superadas nos próximos cinco ou dez anos? Não tenho certeza. Mas se não forem, não acredito que a esquerda mundial possa ganhar, nos próximos 20 ou 40 anos, a batalha fundamental. Nela definir-se-á que tipo de sistema sucederá o capitalismo, quando este sistema entrar definitivamente em colapso.

Tradução: Daniela Frabasile
Fonte: Outras Palavras

sábado, 14 de janeiro de 2012

Bento XVI e as ameaças contra a humanidade

Eu pensava que o que o ameaçava o Planeta eram as guerras e a injustiça social, mas o Papa Bento XVI pensa que é o casamento homossexual.

O papa Bento XVI disse que o casamento homossexual “ameaça o futuro da humanidade”.

Eu pensava que o que o ameaçava eram as guerras (muitas delas étnicas ou religiosas), a fome, a miséria econômica, a desigualdade e as injustiças sociais, a violência, o tráfico de drogas e de armas, a corrupção, o crime organizado, as ditaduras de todo tipo, a supressão das liberdades em diferentes países, os genocídios, a poluição ambiental, a destruição das florestas, as epidemias… Porém o papa, mesmo ciente de todos esses males e consciente de que sua instituição – a Igreja Católica Apostólica Romana – contribuiu com muitos deles ao longo da história ocidental, disse que a humanidade é ameaçada pelo fato de dois homens ou duas mulheres se amarem e, por isso, decidirem construir um projeto de vida comum e obter o reconhecimento legal dessa união para gozar de direitos já garantidos aos heterossexuais.
O amor e a felicidade como ameaças contra a humanidade: foi o que afirmou Bento XVI.
O amor, uma ameaça?!
Dentre todos os desatinos do papa, este foi o que mais me chocou. Talvez porque sua afirmação estapafúrdia e anacrônica tenha violado diretamente a minha dignidade humana de homossexual assumido e orgulhoso de minha orientação sexual e de minha formação científica (sim, porque a afirmação de Bento XVI parte da crença absurda de que o casamento civil igualitário vai transformar todos os homens e mulheres em homossexuais e vai impedir que todas as mulheres da Terra recorram às técnicas de reprodução artificial).
Ora, o amor, como a fé, é inexplicável: sente-se ou não. Não há dicionário que possa defini-lo; só o poeta pode dizer alguma coisa a respeito — fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente — mas para entendê-lo é preciso sentir tudo aquilo que o papa, os cardeais, os bispos e os padres, pelas regras do trabalho que escolheram desde jovens, são proibidos de sentir – seja por outro homem, seja por uma mulher.
Talvez por isso eles não entendem.
Mas o amor nunca poderia ser uma ameaça para a humanidade; antes, sim, uma salvação para os seus piores males, um antídoto contra os venenos que a intoxicam, uma vacina contra as doenças que a afligem. O papa está errado de cabo a rabo. Ele não entendeu nada mesmo.
Contudo, mesmo não entendendo, ele deveria ter um pouco de responsabilidade. Suas palavras têm poder, influência, entram na cabeça e no coração de milhões de pessoas no mundo inteiro. Ele poderia usá-las para fazer o bem. Em vez de dedicar tanto tempo e esforço a injuriar os homossexuais — eu confesso que não consigo entender o porquê dessa obsessão que ele tem com a gente — o papa poderia se colocar na luta contra os verdadeiros males que ameaçam, sim, a humanidade. Esses que matam milhões, que arruínam vidas, que condenam povos inteiros.
Bento XVI não pode continuar difundindo o ódio e o preconceito contra os gays. Ele não pode dizer que nós, só por amarmos, só por reclamarmos que o nosso amor seja respeitado e reconhecido, somos “uma ameaça”. Aliás, porque esse tipo de frases têm uma história. “Os judeus são a nossa desgraça!” (“Die Juden sind unser Unglück!”), disse o historiador Heinrich von Treitschke, e essa desgraçada expressão, publicada na revista alemã Der Sturmer e logo usada como lema pelos nazistas, deu no que deu. Nós, homossexuais, também sabemos disso: o nosso destino na Alemanha nazista, onde Bento XVI passou sua juventude, era o mesmo dos judeus, só que em vez da estrela de Davi, o que nos identificava noscampos de concentração era o triângulo rosa.
A tragédia do nazismo deveria ter servido para aprender que o outro, o diferente, não é uma ameaça, nem uma desgraça, nem o inimigo. E nós, homossexuais, não ameaçamos ninguém. O nosso amor é tão belo e saudável como o de qualquer um. E merecemos o mesmo respeito e os mesmos direitos que qualquer um.
Da mesma maneira que acontece agora com o “casamento gay”, o casamento entre negros e brancos — chamado, na época, “casamento inter-racial” — já foi considerado “antinatural e contrário à lei de Deus” e uma ameaça contra a civilização. Numa sentença de 1966, um tribunal de Virgínia que convalidou sua proibição usou estas palavras: “Deus todo-poderoso criou as raças branca, negra, amarela, malaia e vermelha e as colocou em continentes separados. O fato de Ele tê-las separado demonstra que Ele não tinha a intenção de que as raças se misturassem”. O casamento entre alemães “da raça ária” e judeus também foi proibido por Hitler. Até os evangélicos tiveram o direito ao casamento negado em muitos países durante muito tempo, porque eram, também, uma ameaça para a Igreja católica. Parece que alguns pastores não se lembram, mas foi assim.
Na Argentina, que em 2010 aprovou o casamento igualitário, a primeira grande reforma ao Código Civil, no século XIX, foi impulsionada pela demanda dos protestantes, que reclamavam o direito a se casar. Vários casais não católicos se apresentaram na Justiça, como agora fazem os homossexuais. Quando o país aprovou a lei de criação do Registro Civil e, depois, o matrimônio civil, em 1888, houve graves enfrentamentos entre o governo argentino e a Igreja Católica, que incluíram a quebra das relações diplomáticas com o Vaticano. No Senado, um dos opositores ao matrimônio civil disse que, a partir de sua aprovação, perdida a “santidade” do matrimônio, a família deixaria de existir. A lei foi chamada de “obra-mestra da sabedoria satânica” por monsenhor Mamerto Esquiú, quem disse sobre os governantes argentinos da época que “amamentam-se dos peitos da grande prostituta, a Revolução Francesa”. Todas a predições apocalípticas que foram feitas contra a lei de matrimônio civil, no entanto, não se cumpriram. Anunciaram, garantiram que o mundo ia se acabar… mas o mundo não se acabou.
Passou-se mais de um século, mas as discussões são as mesmas. Os argumentos são os mesmos. E o papa Bento XVI continua sem entender. Não entende, tampouco, que o casamento civil e o casamento religioso são duas instituições diferentes. O casamento civil está regulamentado pelo Código Civil, que pode ser modificado pelo Congresso, já o casamento religioso depende das leis de cada igreja: por exemplo, o casamento católico é diferente do casamento judeu.
O casamento religioso é feito na igreja, templo, mesquita ou terreiro; o civil, no cartório. Para celebrar o casamento religioso na Igreja católica, os noivos devem ser batizados ou fazer um juramento supletório do batismo e devem realizar um curso prévio na igreja – o que não é necessário para o casamento civil, que pode ser celebrado por pessoas de qualquer religião ou por ateus. O casamento religioso, na maioria das igrejas cristãs, é indissolúvel – já o civil admite o divórcio.
Em conseqüência, uma pessoa pode se casar na Igreja apenas uma vez na vida, mas pode casar quantas vezes quiser no cartório, desde que seja divorciada. O casamento religioso, para que produza efeitos jurídicos, deve ser registrado no cartório – os efeitos jurídicos do casamento civil são imediatos. E essas são apenas algumas das muitas diferenças que existem entre o casamento civil e o religioso…
O que nós, homossexuais, reclamamos é o direito ao casamento civil. O projeto de emenda constitucional (PEC) que estou impulsionando no Congresso não mexe em nada com casamento religioso, cujos efeitos jurídicos são reconhecidos no art. 226 § 2 da Constituição, que se manterá inalterado. Meu projeto legaliza o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mas nada diz sobre o casamento religioso. Da mesma maneira que o Estado não deve interferir na liberdade religiosa, as religiões não devem interferir no direito civil. Este último é uma instituição laica, que deve atender por igual as necessidades daqueles e daquelas que acreditam em Deus — em qualquer Deus ou em vários Deuses — e também daqueles e daquelas que não acreditam.
Chegará o dia no qual uma criança irá à biblioteca da escola para procurar, nos livros de história, alguma explicação sobre um fato surpreendente que o professor comentou em sala de aula: “Até o início do século 21, o casamento entre dois homens ou duas mulheres não era permitido”. Para o nosso pequeno cidadão, essa antiga proibição resultará tão absurda como hoje nos resulta a proibição do casamento entre negros e brancos, ou do voto feminino. E se ele descobrir, na biblioteca, que houve um dia em que um papa disse que o casamento gay ameaçava a humanidade, provavelmente sentirá a mesma repulsa que nós sentimos ao lermos a desgraçada frase de von Treitschke.
Bento XVI deveria pensar se ele quer passar à história dessa maneira. Ainda está em tempo.
Tomara que algum dia ele seja capaz de entender e aceitar o amor — qualquer maneira de amor e de amar — e fazer aquilo que Jesus Cristo pregava: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”.

Jean Wyllys - Deputado Estadual Psol - Rio de Janeiro

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